SNI tentou evitar falência de "O Cruzeiro"
Documento do órgão sugeria financiamento do BNDE à revista, que seria colocada a serviço da máquina de propaganda do regime
Em setembro de 1974, o Serviço Nacional de Informações (SNI) tramitou um ousado plano para salvar um dos maiores títulos da imprensa brasileira, na época à beira da falência: a revista O Cruzeiro. O documento de oito páginas buscava o apoio do governo sugerindo que a publicação fosse posta a serviço da máquina de propaganda do regime militar.
Em setembro de 1974, o Serviço Nacional de Informações (SNI) tramitou um ousado plano para salvar um dos maiores títulos da imprensa brasileira, na época à beira da falência: a revista O Cruzeiro. O documento de oito páginas buscava o apoio do governo sugerindo que a publicação fosse posta a serviço da máquina de propaganda do regime militar.
O Cruzeiro surgira em 1928 como parte dos Diários Associados, o império jornalístico de Assis Chateaubriand. Chegara a vender impressionantes 850 mil exemplares por semana nos anos 1950, quando o país tinha pouco mais de 50 milhões de habitantes, quase metade deles analfabetos. Mas sua longevidade e aceitação não foram suficientes para resistir a seguidas más administrações. No começo da gestão Geisel (1974-1979), a publicação definhava, com milhões em dívidas. Seus funcionários, que não podiam ser demitidos porque o semanário não tinha como arcar com os direitos trabalhistas, recebiam vales no lugar de salários.
Dividida em quatro partes, a proposta encaminhada e endosssada pelo SNI enfatizava a abrangência nacional da revista, bem como sua capacidade de servir como veículo brasileiro de exportação para o restante da América do Sul. Assim, O Cruzeiro seria fator importante para o Brasil exercer sua liderança no continente. Essa expectativa em relação à revista se justificaria por sua lealdade ao regime, representada, entre outras coisas, por ter gerado “opinião pública favorável ao movimento libertador e renovador de março de 64” e ter dado “apoio nítido e forte aos gestos administrativos da Revolução”.
Em outra justificativa, afirmava-se que “órgãos de importância editorial” estariam “minados pelas esquerdas internacionais”, criando uma situação na qual o fechamento de O Cruzeiro seria prejudicial ao país e à sua segurança. Não menos perigosa seria a condição de todo o grupo Diários Associados, conforme pergunta formulada na terceira página do documento: seu fechamento “não poderia desencadear (...) a demolição em cadeia de todos os veículos de comunicação (...) deixando ao desamparo social alguns milhares de dependentes?”.
Depois da exposição das dificuldades financeiras e trabalhistas enfrentadas por O Cruzeiro, o texto apresentava demandas: refinanciamento das dívidas via Banco do Brasil e Ministério da Fazenda, preferência para a revista em caso de divulgação de políticas dos governos estaduais e municipais e amparo do Ministério das Relações Exteriores para a internacionalização do semanário. Uma das sugestões era “fazer sentir às agências de publicidade (...) a necessidade de programar campanhas para O Cruzeiro”, pois os profissionais dessas agências estariam praticando boicotes contra a revista por motivos ideológicos: “É preciso observar que muitos profissionais esquerdistas, banidos da imprensa diária e semanal, caíram nas agências e não veem com bons olhos a revista O Cruzeiro. (...) Não seria necessário, aqui, enfatizar a eficiência do sistema de boicote das esquerdas, eficiência presente também no seu sistema promocional”.
Antes de terminar, o documento revelava preocupação em apontar que a possível queda dos Diários Associados prejudicaria a imagem do governo, que seria responsabilizado de forma injusta por um “gesto de esmagamento da imprensa livre”. No último parágrafo é relatado o encontro de um advogado, ex-funcionário de O Cruzeiro, com funcionários do BNDE a fim de pedir ajuda financeira para a revista. O apelo teria sido “muito bem recebido pelos diretores do BNDE, que veem a possibilidade de empréstimo apoiado em verbas do PIS”.
Em bilhete que acompanha o plano de salvamento, dirigido a Heitor Ferreira, então secretário particular do presidente Geisel, o coronel Sebastião Ramos de Castro apoia a ideia, devido à “forte campanha contra o Brasil no exterior”. Heitor repassou o bilhete ao general Golbery do Couto e Silva, ministro do Gabinete Civil, ironizando: “Já deu bolo”. A resposta do general: “Tinha que dar. Ora, o BNDE emprestar aos Diários Associados!!!”. A revista acabou fechando em julho de 1975.
Em 1982 o corpo do jornalista Alexandre von Baumgarten, o provável autor do plano de 1974, bateu numa praia do Rio de Janeiro. Foi sepultado como afogado, mas quando o repórter Xico Vargas foi à delegacia que cuidou do caso, encontrou no processo as balas que o cadáver tinha na cabeça. Baumgarten deixou um dossiê narrando suas novas tentativas de ressurreição da revista e acusando o SNI de planejar sua morte.
Em 2014, o coronel da reserva Paulo Malhães, uma das estrelas do Centro de Informações do Exército (CIE), identificou o coronel Freddie Perdigão Pereira, veterano do CIE, dos DOI de São Paulo e do Rio de Janeiro, bem como do SNI, como o assassino de Baumgarten. Personagem emblemático, Perdigão comandava os tanques que guarneciam o palácio Laranjeiras, onde estava João Goulart na manhã de 1o de abril de 1964 e que, à tarde, foram para a frente do palácio Guanabara, onde estava o governador Carlos Lacerda. Na noite de 30 de abril de 1981, Perdigão jogaria uma bomba na direção da estação de força do Riocentro.