Carta de Arildo Valadão à mãe (transcrição)
Rio, 8 de julho de 1970.
Querida mamãe!
Rio, 8 de julho de 1970.
Querida mamãe!
Estou bem, embora sentindo-me com a consciência um tanto pesada por estar em falta com a Sra., a quem tanto quero. Falta que se estende também até ao Roberto, por não ter comparecido ao casamento dele. Enfim, nem sempre tudo sai como desejamos. As coisas vão acontecendo assim como a Terra vai girando ao redor do Sol, o elétron ao redor do núcleo, e, como sabemos, a maioria das coisas – como estas – acontecem independente de nossa vontade pessoal. Muitas vezes os objetivos que traçamos para nós mesmos são inatingíveis dentro de um determinado espaço de tempo, em determinado lugar. Convém então que tenhamos o máximo de flexibilidade para podermos contornar os empecilhos, sabendo aproveitar os erros para diminuir o tempo que nos separa da vitória futura, a qual é inevitável. Sim, minha querida mamãe, nós, apesar de algum tombo passageiro, seremos vitoriosos, inevitavelmente, inapelavelmente. Seremos nós – a Sra. e os manos, todos nós – quem no final empunhará os louros da vitória. Não importam os tombos que porventura soframos durante o caminho, pois que após eles estaremos sempre novamente de pé. Não diz a musiquinha: “o homem de moral não fica no chão...”? Pois assim o é, na verdade! Muitas vezes é por meio de alguns tombos que podemos medir quão grandioso é o nosso objetivo. É quando o inimigo faz tudo para derrubar-nos – e não o consegue – que podemos medir o quanto somos fortes, na verdade.
É assim que alguns fatos desagradáveis se passam comigo e Áurea, atualmente. Estou certo de que a Sra., com a segurança que lhe é própria da personalidade e com as experiências que a Sra. tem desta vida tão ardentemente vivida até agora, saberá compreendê-los e analisá-los.
Os fatos resumem-se no seguinte: um rapaz foi preso há cerca de um mês, aproximadamente, e acusou-me de subversivo. Ora veja só a Sra., eu, que fui indicado para assessor direto do ministro da Educação e Cultura, ser acusado de subversivo! Não é mesmo engraçado? Logo eu, tão querido pelos professores e até pela direção da escola, em quem tanto confiavam, ser acusado de uma tal coisa?! É bem verdade que eu era presidente do Diretório Acadêmico de minha escola, mas esse cargo nunca foi sinônimo de subversão. É certo também que tanto eu quanto Áurea sempre fomos alunos aplicados – o que demonstram nossos sucessos na escola e também o fato de sermos ambos bolsistas do Conselho Nacional de Pesquisas. Tudo em nosso procedimento leva a uma só conclusão: que nossa vida é limpa, digna, honrada e honesta.
Mas quem é que quer saber disso tudo? Nós vivemos sob um regime militar. Basta uma pequena acusação, mesmo desprovida de fundamento como é esta, para que os “guardiães da democracia” passem a perseguir o acusado. É claro que querem prender-me a todo custo – levaram até Jane e Lília para depor. Não sabem eles que estão lidando com o filho da D.ª Helena, não é, mamãe querida?!
Pois é, mamãe, eu bem poderia apresentar-me e mostrar o quanto tal acusação carece de fundamento. Entretanto isso envolve bastantes riscos físicos para mim e Áurea, os quais não estamos dispostos a correr. Como a Sra. deve saber, eles não se limitam a prender e procurar saber se é inocente ou culpado, mas logo designam a pessoa por culpado e então a submetem a torturas horríveis. Tal tratamento é aplicado indiscriminadamente. E depois pode-se ficar preso, incomunicável, anos e anos. Isso tudo, é claro, seria bem pior do que eu resolvi fazer.
Diante de tudo isso resolvemos abandonar – por uns tempos, até que a situação melhore – a escola e o trabalho. Trancamos matrícula na escola e deixamos de lado o trabalho. Tivemos que nos desfazer mesmo do nosso apartamento, visto que a polícia estava vigiando-o.
É lógico que tudo isso envolve mudanças em nossa vida, que podem inclusive durar algum tempo que não sei quanto seja. A Sra. não deve se preocupar com nada, pois bem sabe que somos jovens, fortes, dispostos, prontos a enfrentar tudo. Não deve também estranhar o fato de não termos ido aí, pois se fôssemos estaríamos correndo o risco de sermos presos. Com relação à nossa correspondência, esta ficará interrompida durante todo o tempo em que perdurar essa situação.
Acredite, mamãe: esta é a melhor solução para tal problema. De outra forma estaríamos correndo vários riscos que resultariam num sofrimento mais para nós todos. Assim, a Sra. pode ter certeza de que, em qualquer lugar onde eu e Áurea estivermos, estaremos sempre bem. Algum dia chegará em que nós estaremos novamente juntos e então todas essas coisas serão coisas de um passado distante e nós riremos juntos e satisfeitos quando lembrarmos delas. Temos um quadro muito bonito que ganhamos de presente de casamento, que deverá ser entregue à Jane pelo cunhado da Áurea. Quero que a Sra. fique com ele e que o guarde para nós; quando a Sra. o olhar pensará que nós estamos bem e se consolará. Assim, quando nós estivermos novamente juntos, quando nos encontrarmos novamente – não passará muito tempo –, a Sra. nos entregará ele de volta.
Por enquanto vá fazendo o que a Sra. mesma planejou. A aposentadoria não tarda, e a Sra. vai viver uma vida “regalada”. Depois, o Tivinho não quer casar agora – segundo o que parece, ele quer seguir o exemplo do Roberto; logo, ele ainda vai precisar de seus cuidados.
Se por acaso a Sra. encontrar os parentes da Áurea, lembre-se de dirigir-lhes algumas palavras amigas. A casa dos pais dela é um lugar ótimo para se tirar algumas férias, e eles sempre quiseram que a Sra. fosse lá. Se quiser, a Jane pode se comunicar com a Iara e pronto!
Com relação ao nosso curso, não se abale. Quando menos esperar nós apareceremos por aí com os “canudos” debaixo do braço.
Transmita meu abraço mais afetuoso para Marlene, César, e beijos nas crianças. Diga ao Roberto que senti muito não estar presente durante o casamento mas que quero ser o padrinho do primeiro rebento. Deve dar-lhe esta carta para ler também.
Enfim, mamãe, tenho certeza de que a Sra. saberá enfrentar este período com ânimo e com coragem. É precisamente por essa certeza, por tudo o quanto a Sra. tem feito e pelo que a Sra. é, que lhe devota tanta admiração e tanto amor este seu filho,
Arildo